terça-feira, 20 de março de 2012

Cuide-se como uma romana



O romano Ovídio sabia de sedução como poucos. Por isso, escreveu uma Arte de Amar consagrada a senhoras & cavalheiros com ambições amorosas. Eis os cuidados que ele prescrevia a quem saía dos doces braços de Morfeu e tinha de se mostrar ao mundo.





Medicamina Faciei Feminae


"Agora ides saber como é que uma casquilha,/
 Ao sair de manhã dos braços de Morfeu,/
 Adquire aquela tez, que tão suave brilha;/
 Quer se enfade; quer não, eis o mistério seu:

 De cevada da Líbia, extrema e bem pelada/
 Libras duas tomai; de ervas igual porção;
 Lançou em ovos dez as ervas e a cevada,
 E pôs tudo a secar à fresca viração

 Seco o misto mandou que/
 A tarde jumentinha/
 Que fez revolutear a corrodente mó;
 Pondo um pouco de parte a cereal farinha

 Tratasse de esfazer-lhe aquilo tudo em pó./
 Dos que primeiro perde esgalhos o veado./
 Pisa um sexto de libra: une e peneira os pós/
 Depois vai-se ao Narciso, ao doido namorado,
 Que tanto ardeu por si, quando fugiu de vós
 Pune-lhe ainda o rigor depois desfeito em flores
 bolbos doze lhe extrai de húmida raiz,
 Despe-os da pele, e os pisa, 
 em vítima aos amores com dextra rigorosa 
 em puro almofariz



Duas onças de goma, e zea da Toscana
Também junta, e em fim de mel nove tantos do mais
Tem este confeição soberana
Ja lhe conhecereis, se acaso experimentaes

 Ungi com ele o rosto, adoptai o meu conselho
 Vereis como sai lisa e radiosa a tez!
 O brunido metal do vosso próprio espelho
 Se vos dirá vencido em brilho e polidez

Eis agora outro composto
entre as máculas do rosto,
e dos bons juntae-ao aos vossos
Torrai pálidos tremoços

Torrai favas flatulentas
Libras três de cada espécie
E ao trilhar ds mós cinzentas
A esta mistura se arremessa
Solta em pó, quer-se alvaiade

Flor de nitro roxo, e a linda
iris, lá de Ilíria vinda
para auxílio a ti, beldade.

Estes três ingredientes
Cabe às servas dirigentes
Triturá-los em comum
Té dos três fazerem um;
É seu peso na balança
Onça justa. Em fim se lança
d'essa massa com que os ninhos
fabricando os alciões
Sobre vórtices marinhos
Vão seus tenros passarinhos
Embalando entre canções

Na de amor farmacopeia
Este provido composto
Gasta as máculas do rosto,
E se chama Alcionea,

Para a cútis do semblante
Meia onça é bastante
corpo todo exige mais
para ungi-lo inteiramente
Esta dose se acrescenta
Com mel de áticos panaes

Se bem que pio incenso aplaque aos nomes
em tomar dele uns grãos não faço agravo
aos sacros lumes

São para vós: o culto não deprava
ajuntai-o ao nitro que desgasta o feio cravo
nitro, onças quatro; quatro o incenso, e basta

menos de um quarto, lhe ajuntae de goma
arbórea pasta

Da mirra grossa um mínimo se toma;
Pisa-se tudo; o pó, bem peneirado
com mel se doma
E tendes bom remédio aparelhado

Outro é segundo a prática
não menos excelente
juntai mirra aromática
e funcho rescendente

da mirra nove escrupúlos;
cinco do funcho; as rosas 
das graças tão prezadas 
por lindas, por mimosas,
com jus são convidadas
a vir também aqui

de secas rosas rubidas
va depois mao cheia abaixo
depois, sal amoníaco,
depois, incenso macho
o cremor de cevada
na sábia misturada
por ultimo infundi

O incenso mais o sal
As flores dos amores
Oponham peso igual
Semblante que se unta com este cosmético
(não são exageros de génio poético)
a subitas quasi se vê reflexo

Também já vi dama, que em pura água fria
pisava papoilas, e delas soía
com êxito idêntico as faces ungir.

Tradução por António Feliciano de Castilho, publicada na revista Archivo Pittoresco, volume IV, 1861

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