terça-feira, 3 de abril de 2012

Vermelho, vontade indómita



Miguel Bosé em Tacones Lejanos, de Pedro Almodóvar




O vermelho sinaliza perigo e transgressão. Recorde-se, no cinema clássico (tão rico em parábolas como a Bíblia ou a mitologia greco-romana), o destino sofrido pelas criaturas que afrontaram os bons costumes reinantes com o uso de um vestido vermelho. Em Jezebel, Julie (Bette Davis) decide transtornar a ordem estabelecida, com a opção por um vestido dessa cor num baile de donzelas do Sul, virginalmente vestidas de branco. Pagará cara a afronta. Entra no salão com o ar de gato que comeu o canário, mas, à medida que a indignação dos presentes lhe abre alas, o seu rosto é tomado pelo terror do ostracismo. Que virá, implacável, acompanhado pela partida do noivo (Henry Fonda), incapaz de lhe perdoar o dislate. O vestido vermelho transformou a menina rabina Julie em Jezebel, a mulher que fez o mal à face de Deus. Só a morte, escolhida para acompanhar o amado perdido, lhe permitirá expiar o "crime" e redimir-se na memória dos homens.


Bette Davis e Henry Fonda em Jezebel



   Não chega como aviso? E Scarlett O'Hara? Recorda-se do vestido que Rhett escolhe para a largar na festa de anos de Ashley quando toda a cidade comentava o alegado caso de ambos? Vermelho, tão vermelho como os de Belle Watling, a madame do bordel local. O escândalo não chega a rebentar, mas a insubmissa pagará com a solidão o preço das suas escolhas.
   Dir-se-á que os tempos são outros, mas um vestido vermelho ainda não é  para todas. O desejo dele aparece episodicamente em quase todas as mulheres, mas só espíritos toldados pelo sonho de um destino maior persistem. Como a poetisa Dorothy Parker, que nunca foi mulher dada à razoabilidade dos códigos de conduta, e escreveu um poema intitulado "The Red Gown". O vermelho é a cor da subversão. No filme Dishonored (de Josef Von Sternberg, 1931), a loura mais enigmática do cinema dá vida a uma espia de excepcional coragem que pede um derradeiro instante ao pelotão de fuzilamento. Não implora a misericórdia divina nem apela à compaixão dos deuses. Saca do bâton e retoca a maquilhagem. Nada podia ser mais sedutor do que tão provocadora extravagância. Coquette em vida, a agente X-27 sê-lo-ia também na morte. Rei do artifício cuidadosamente estudado, o realizador (que fez da robusta alemã Marie Magdalene Loch a sofisticada Marlene Dietrich) sabia a razão de gesto, na aparência, tão absurdo.Tal como as rosas vermelhas são oferecidas para demonstrar o poder de um sentimento, uma mulher que usa este bâton fá-lo com a entrega de quem conduz a bandeira da coragem. De quem não esconde a sua sensualidade.
   Na Hollywood dos anos áureos, o perfume do pecado pintava de ruivo as cabeleiras das suas mais pérfidas mulheres. Assim acontecia a Gilda, protótipo da mulher fatal, que atacava ao anoitecer, directo ao coração e à  vontade de um homem, à fascinantemente terrível Joan Crawford, à voluntariosa Susan Hayward, à turbulenta Maureen O'Hara e a uma Deborah Kerr, protagonista (em Até à Eternidade) da mais ousada cena de amor consentida pelo cinema norte-americano na conservadora década de 50. Mais uma vez, Hollywood limitava-se a dar corpo a mitos velhos como a civilização ocidental.
  Na Antiguidade Clássica, uma ruiva já não era flor que um homem sensato cheirasse. Na Idade Média chamavam-lhes feiticeiras e na sociedade vitoriana consideravam-nas irremediavelmente perdidas. A ruiva Belle Watling de E Tudo o Vento Levou era, em muitas coisas, mais decente do que a morena Scarlett O'Hara, mas o bordel que dirigia em Atlanta remetia-a para um «ghetto» por onde Rhett Butler (e demais senhores do cavalheiresco Sul) passava sem se afundar. Do lado de cá do oceano, pela mesma época, teriam «vivido» (segundo o romancista John Fowles), a ruiva Sarah Woodruff e a morena Ernestina. Esta era mais bela do que a primeira mas Sarah tinha um rosto inesquecível, de tão trágico. A amargura brotava dele tão pura, natural e incessantemente como a água de uma nascente dos bosques. Ernestina contentava-se em ter «exactamente o rosto certo para o seu tempo; isto é, de queixo pequeno, oval, delicado como uma violeta.» Sarah tinha um passado atrás de si. Ernestina apenas o somatório de dias, transparente como a água que a criadagem lhe dava a beber.
  O vermelho usa-se como bandeira de uma vontade indómita. Não nos deixa mentir a sua Semiótica histórica: na Roma Antiga era a cor dos generais, da nobreza e dos patrícios e, consequentemente, dos Imperadores, melhor dizendo de todos os que eram movidos pela paixão do poder. Ao longo dos séculos, usaram-na muitos dos que se julgaram com direitos exorbitantes sobre os demais, desde os políticos aos cardeais.

Sem comentários:

Enviar um comentário